
Não saber o que vem em seguida: uma agressão? um alimento estragado? uma ameaça? roupas molhadas para trabalhar? Trabalhadores percorreram um longo trajeto ao ganhar uma boa oportunidade de trabalho em Bento Gonçalves para auxiliar na renda de casa, mas o que encontraram aqui foi um verdadeiro pesadelo em suas vidas. Trabalhando para a empresa Fênix Serviços de Apoio Administrativos (Antiga Oliveira & Santana), mais de 200 homens foram submetidos a condições precárias e análogas à escravidão na colheita da uva.
Natural de Salvador-BA e pai de família, um dos trabalhadores, que vamos chamar de Fernando, viu uma chance de iniciar o ano com uma boa renda no bolso com a proposta recebida. A promessa era de R$ 3 mil, com as viagens de ida e volta custeadas, assim como a alimentação e o alojamento durante 45 dias. Após quatro dias percorridos para desembarcar em Bento Gonçalves, ele se deparou com uma realidade totalmente distinta.
Além de ter que custear a alimentação durante a viagem, assim que chegaram em Bento, por volta das 4h da manhã, já foram colocados para trabalhar. "Acordávamos 4h da manhã para às 5h, no máximo, estarmos saindo para os parreirais. Parávamos de colher às 19h30 e, até o transporte vir, chegávamos no alojamento quase meia-noite, porque os parreirais eram longe e tinha muita gente para pegar”, relata o trabalhador.
Essa foi a rotina vivenciada pelos trabalhadores, alguns com anos de trabalho na empresa terceirizada, outros que desembarcaram na Serra Gaúcha em janeiro. Se não bastasse a jornada exaustiva, as péssimas condições do alojamento e a pressão psicológica tornavam o trabalho, tanto na colheita, nas áreas dos produtores rurais, como no descarregamento de uvas, nas vinícolas, um sofrimento inimaginável.
“Trabalhávamos sob pressão o tempo todo no alojamento. E para que a pressão se tornasse mais firme ainda, eles vinham com ameaças e agressões. Tive vários colegas agredidos. Fui esgoelado porque compartilhei uma panela de milho com os colegas. Não tinha culpa de nada. Éramos xingados e humilhados mesmo. Falavam que baiano bom era baiano morto”, comenta Fernando.
O medo era instaurado nos trabalhadores, que eram ameaçados caso contassem para os produtores rurais, para pessoas que trabalhavam nas vinícolas ou, até mesmo, para seus familiares. “Tinha um segurança que ficava com uma arma na cintura e nos mandava abaixar a cabeça e trabalhar. Nunca imaginei viver isso. Não podíamos fazer nada nem gravar alguma coisa, pois tinha câmeras por todos os lados do alojamento. Meu irmão começou a desconfiar que alguma coisa estava errada, mas eu tinha que mentir, pois eles nos ameaçavam se contássemos algo para a nossa família. Era terrível, um dia parecia um mês naquele lugar,” relata um dos homens, que deixou uma esposa e seis filhos na Bahia para auxiliar com as despesas da casa.
E nesses dois meses de trabalho nenhum deles viu a cor do dinheiro. “Não recebemos nada e se precisássemos de dinheiro para enviar para a família ou para comprar alguma comida diferente - no único mercado que podíamos comprar - precisávamos pegar dinheiro com um agiota que colocava juros de 50%,” conta um dos trabalhadores.
Conforme relato de outro trabalhador, que não quis se identificar, ele e outros 15 homens, em certa ocasião, percorreram cerca de 16 quilômetros, da área onde estavam colhendo uva até o alojamento, uma vez que o transporte não apareceu para buscá-los.
Muitos vieram só com a roupa do corpo. Eles eram obrigados a usar uniformes sujos, muitas vezes encharcados, e tomavam banhos gelados após chegarem do trabalho. “Eu não estava acostumado, quer dizer, ninguém aqui estava acostumado com esse frio, então imagina chegar depois de um dia de trabalho exaustivo e precisar tomar um banho gelado num frio desses? Nem o corpo e nem a cabeça da gente aguentava mais”, afirma um dos trabalhadores.
Por essas e outras situações, muitos ficavam doentes, mas não tinham como ir ao médico. Então, um dos homens que ficou como responsável por um dos grupos que chegou em Bento em janeiro, tentava ajudar como podia. “Essa responsabilidade caiu no meu colo, pediram só para eu organizar a lista dos nomes de quem viria para cá e no fim tive que cuidar de tudo. Eu não queria isso, nunca quis, nunca nem imaginei que seria esse inferno, mas tentava ajudar como podia, comprava remédios, dava escondido, tentava negociar com os seguranças, mas foi terrível. Minha família começou a receber ameaças lá em Salvador, eu era ameaçado aqui, foi o caos,” desabafa um dos homens.
A humilhação era constante:
Os trabalhadores relataram que os xingamentos e humilhações eram comuns, não só no alojamento, como também nos parreirais onde trabalhavam, porém especificamente de pessoas ligadas à empresa Fênix e não dos produtores rurais. “O chefe da equipe disse que vivíamos na Bahia comendo bosta, e quando chegamos aqui queríamos comer caviar. Ele falava isso na frente dos produtores. Não viemos de lá comendo bosta. Não somos ricos, mas temos dignidade. Lá tem vagas de emprego, mas buscávamos uma oportunidade melhor para dar uma ajuda para a família. Chegar aqui e escutar o próprio cara que nos contratou para trabalhar dizendo que vivíamos lá comendo bosta foi muito humilhante”, relata.
Por parte dos produtores rurais, os trabalhadores afirmam que, na grande maioria, os tratavam bem e auxiliavam com períodos de descanso, água e lanches. Um dos homens, dois dias antes de ser deflagrada a operação, passou a dormir na casa do produtor, em comum acordo com o proprietário, para fugir da situação na qual se encontrava no alojamento. “No alojamento, cada noite era uma oração e cada manhã era um agradecimento”, destaca um dos trabalhadores gaúchos resgatados.
De acordo com esse trabalhador, o domingo, apesar de ser folga, como constava no contrato assinado junto ao RH da empresa, também faziam com que os homens trabalhassem, com a promessa de ganhar um montante extra de R$ 100, o qual nunca foi recebido. A carga horária que era anotada também não condizia com as horas realmente trabalhadas. “Era uma carga horária extrema e que se assinava o mínimo no controle”, explica.
O resgate:
Dois dias antes do desdobramento da operação de resgate, um dos trabalhadores gravou um vídeo mostrando as condições do alojamento e uma imagem da marmita com comida estragada e enviou para a família, a qual ficou desesperada e divulgou nas redes sociais. Naquela mesma noite, conforme relato de um dos trabalhadores que era colega de quarto, os seguranças entraram no espaço, encontraram o jovem, o espancaram e depois o trancaram para fora do local, dizendo que iriam matá-lo. “Foi cena de filme. Pegaram o menino e bateram feio nele, de dar dó. Foi muito triste mesmo”, comenta.
No desespero, o homem fugiu e então conseguiu fazer contato com a Polícia Rodoviária Federal de Caxias do Sul, desta forma, iniciando o resgate dos trabalhadores. O dono da Oliveira & Santana, Pedro Oliveira Santana, de 45 anos, foi preso, mas pagou fiança e foi liberado. “A revolta é ver que o cara que teve chance de mudar tudo isso viu que poderia chegar nesse ponto e não fez nada. Agora as consequências vão vir”, destaca um dos trabalhadores.
Os 207 trabalhadores, sendo 198 baianos e nove gaúchos, já estão retornando para as suas casas. Conforme membros do Ministério Público do Trabalho (MPT) e do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), será convocada uma audiência pública, com a presença das vinícolas e dos produtores rurais, bem como lideranças e sindicatos envolvidos na cadeia produtiva vitivinícola, com o objetivo de debater medidas preventivas para que situações como essa não se repitam.
Bento Gonçalves e a Serra Gaúcha viraram pauta nacional por um crime que nunca deveria ter ocorrido em pleno século XXI. Basta saber se esse caso será mais um que cairá no esquecimento ou se, de fato, atitudes serão tomadas para que isso nunca mais aconteça.
Reportagem escrita por: Kévin Sganzerla e Renata Oliveira