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As lembranças de Bento Gonçalves que a Princesa Isabel guardava na Europa

Imagens que estão entre as mais antigas da cidade permaneceram mais de 120 anos "perdidas" em um baú que a filha de Dom Pedro II levou para a França quando a família imperial deixou o Brasil, em 1889. Ainda hoje, sua origem carrega muitas incógnitas

08/05/2021 às 15h56 Atualizada em 13/05/2021 às 09h12
Por: Jorge Bronzato Jr.
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Fotos: Luiz Stigaard |
Fotos: Luiz Stigaard | "Coleção Princesa Isabel: Fotografia do Século XIX" (Editora Capivara)

Por Jorge Bronzato Jr.

 Memória BG - Bento Gonçalves

Duas fotografias que há pouco mais de uma década começaram a circular pela internet mostram os primórdios do núcleo central a partir de onde cresceu Bento Gonçalves e, além de serem algumas das mais antigas da cidade, carregam consigo uma história ainda pouco conhecida – e permeada de dúvidas sobre os registros. "Perdidas" por quase 120 anos, as imagens foram redescobertas em meados da década de 2000, em Portugal, em um baú esquecido na casa de uma descendente da Princesa Isabel, mas suas verdadeiras origem e motivação talvez tenham se perdido para sempre.

Em uma delas, tomada de um plano mais aberto e elevado (confira abaixo), é possível perceber que aquela que se tornaria a rua Marechal Deodoro, ainda em chão batido, é ladeada por duas dezenas de edificações baixas, algumas com dois pisos. Um destes imóveis, à direita e ao meio da cena, parcialmente encoberto, é uma casa no estilo tirolês, na qual funcionava a administração da Colônia Dona Isabel, como se chamava o povoado à época, antes da emancipação política, ocorrida em 1890. Nota-se, também, uma incomum aglomeração de pessoas, em vários grupos que se espalham ao longo da via.

Na outra, que abre essa matéria, feita a partir do nível da rua, essa junção de moradores é ainda mais intensa. Eles estão dispostos em três grandes filas que têm início próximo ao ponto onde hoje está a esquina com a rua Saldanha Marinho. Bem vestidos, parecem organizados para um evento e à espera da conclusão do trabalho do fotógrafo, cujos cliques não eram tão instantâneos como nos dias atuais.

Em ambas, ao fundo, antes dos morros onde se desenharia tempos depois o bairro Humaitá, está a inconfundível estrutura do Santuário de Santo Antônio.

Mas o que teriam de tão especial estas fotos diante de tantas outras acumuladas nas décadas seguintes, em um trecho que talvez seja o mais retratado da história da Capital do Vinho?

Em primeiro lugar, é justamente o fato de elas pertencerem à coleção particular de Isabel e seu marido, o Conde d'Eu (que deu o nome à então vila que hoje é Garibaldi), e terem sido despachadas para a França após a expulsão da família imperial das terras brasileiras. Lá, guardadas em envelopes junto a outras mais de mil e duzentas, permaneceram escondidas e, principalmente, conservadas graças ao clima.

O outro fator que as torna peculiar é o emaranhado de incertezas a seu respeito: entre as poucas informações, havia no verso o nome do fotógrafo, Luiz Stigaard, e apenas uma legenda dizendo "Povoação de D. Isabel - rua principal - festa da Emancipação 14 x 21cm. 1888".

Baú da sorte

Quem apresentou ao público essa magnífica descoberta foram os pesquisadores e colecionadores Pedro Corrêa do Lago e Bia Corrêa do Lago, no livro "Coleção Princesa Isabel - Fotografia do Século XIX", publicado em 2008 pela Editora Capivara. Não tivesse o casal contado com uma boa dose de sorte, entretanto, talvez o relato narrado nestas linhas, assim como muitos outros, nunca tivesse vindo à tona.

Em viagem à Portugal, alguns anos antes, quando foram presentear a herdeira de Isabel com um exemplar da obra "Os fotógrafos do Império", que havia sido lançada pela dupla e na qual figuravam várias imagens da família imperial, Pedro e Bia souberam por ela da existência desse baú, ao qual pouco se dava importância, já que parecia guardar nada mais do que um bom número de fotos sem muita relevância histórica. O engano não podia ser maior.

Com a permissão da anfitriã, os dois abriram a velha caixa de ferro e começaram a mergulhar timidamente nas memórias. "A gente abriu aquilo surpreso, porque era uma coisa que ela não abria nunca e que ela tinha herdado porque nenhum dos irmãos quis. Na superfície, tinha muitas fotos de bebês, que as famílias reais trocam entre si. Aí, depois dessa primeira camada, eu que trabalho com manuscritos, fui reconhecendo envelopes com a letra do Conde d'Eu e da Princesa Isabel. E foram saindo fotos que eu já conhecia, só que em um estado fenomenal, ou então fotos que eu não conhecia, apesar de conhecer os fotógrafos, ou então imagens que eu não conhecia e de fotógrafos que eu também não conhecia, que era o caso do Stigaard", conta Pedro, por telefone.

Naquela hora, eles perceberam o tesouro que acabavam de garimpar. "Fui me dando conta que minha mulher e eu tínhamos descoberto a coleção – que ninguém sabia que existia – de fotografias do Brasil acumuladas pela Princesa Isabel e pelo Conde d'Eu ao longo da vida deles e que eles levaram para o exílio. O imperador deixou a coleção dele e doou para a Biblioteca Nacional, mas o Conde e a Princesa levaram a deles, só que isso não ficou registrado em lugar nenhum. Isso ficou no Castelo d'Eu, onde eles moraram até a década de 1920, foi herdado pelos descendentes e acabou nas mãos dessa senhora. Ninguém sabia que isso existia, mas se tratava de algo que permitia reescrever a história da fotografia brasileira do século XIX, que nós já tínhamos estudado muito. Nós éramos pessoas bem preparadas para entender o que aquele baú significava", completa.

Entusiasmados, propuseram à senhora que o material fosse reunido em um livro. Mesmo sem permitir que fosse revelado com quem a coleção estava, ela deu o aval e, então, a dupla contratou um fotógrafo que, por dez dias, trabalhou na digitalização de todo o acervo. Cerca de três anos depois, ele finalmente foi apresentado na publicação, consagrada com o Prêmio Jabuti em 2009. Para autenticar a coleção, Pedro e Bia conseguiram que a então única neta viva de Isabel, Thereza Maria de Orléans e Bragança, que viria a falecer em 2011, escrevesse um texto de abertura, no qual confirmou a existência do baú e de seu conteúdo como um pertence familiar.

Celebração da Abolição?
O livro também conta, na medida do possível, com biografias dos fotógrafos responsáveis pelos registros. No caso de Dona Isabel (Bento Gonçalves) – assim como em Conde d'Eu (Garibaldi) –, todas as imagens levam o crédito de Stigaard e são, supostamente, do mesmo período. Pelo ano registrado nos envelopes, nos quais constava apenas 1888 como referência de data, elas são tratadas no livro como um festejo à Abolição da Escravatura, que seria um dos poucos fora de grandes centros do país. "Presume-se que a festa da emancipação seja da emancipação dos escravos, no ano da abolição. Estas fotos foram feitas no lugar que tinha o nome da princesa e alguém teve a ideia de mandar para ela", retoma Pedro, ponderando que, mesmo assim, não há, com os elementos que se tem até aqui, condições de tratar essa informação como definitiva.

Contudo, se confirmada essa motivação, as palavras dedicadas à Stigaard no livro demonstram o quão valiosos podem ser os seus registros. "Este conjunto de fotografias de Stigaard foi certamente presenteado aos Condes d'Eu porque as povoações recém criadas haviam sido batizadas de D. Isabel e Conde d'Eu, e também por esse motivo foram conservadas pelo casal. Com esta imagem das comemorações no Sul, e com a de Adolfo Lindemann que também registra a festa da Abolição na cidade de Penedo, em Alagoas, milhares de quilômetros mais ao norte, a Coleção Princesa Isabel ilustra a extensão dos festejos pela emancipação dos escravos, também registrados no Rio de Janeiro, nas vinte imagens de Ferreira, Elias e Breton".

Na mesma linha, o historiador e cientista político José Murilo de Carvalho, que assinou o prefácio da obra de Pedro e Bia, tratou de dar ainda mais peso a essa possibilidade de que a Colônia Dona Isabel tenha sido palco de tão significativo evento. Em 2011, ele escreveu: "Até agora, foram descobertas e identificadas vinte e cinco fotos referentes a todos esses acontecimentos. Quinze delas, de autoria de Antônio Luiz Ferreira, foram localizadas por Pedro e Bia Correa do Lago na Coleção Princesa Isabel e publicadas em 2008. Essa coleção ainda contém outros nove registros das festas que celebraram a Abolição: três de Augusto Elias, três de A. Breton, um de Lindemann, um de Luiz Stigaard e um de Marc Ferrez. Todos eles – com exceção de dois – se referem aos acontecimentos no Rio de Janeiro. O de Lindemann ilustra as celebrações em Penedo (Alagoas). Muito curioso e interessante é o de Stigaard, feito no povoado de D. Isabel, onde hoje fica a cidade de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul. Nele vemos dezenas de imigrantes, alinhados em uma rua sem calçamento, festejando o fim da escravidão. Marc Ferrez era fotógrafo da Marinha Imperial e registrou a festa no Clube Naval. Por fim, Augusto Elias e A. Breton captaram a comemoração nas ruas do Rio".

Registros podem ser ainda mais antigos
A historiadora bento-gonçalvense Terciane Ângela Luchese levanta algumas possibilidades que indicam que a reunião dos habitantes do povoado possa não ser relativa à comemoração do 13 de Maio de 1888 e nem mesmo da emancipação política que deu origem a Bento Gonçalves, dois anos depois. Ela seria ainda mais antiga ou poderia estar relacionada ao aniversário de outro importante momento da trajetória local, na análise da pesquisadora. "Eu penso que a imagem é da festa da Emancipação sim, mas relativo à elevação de Dona Isabel à condição de distrito de São João de Montenegro, o quarto distrito. Foi em 12 de abril de 1884 o decreto oficial. Mas é possível que a imagem seja relativa a este momento e comemorassem em anos posteriores também? As roupas parecem corresponder ao período de abril ou meia estação", salienta.

Terciane ressalta que a descrição que o imigrante italiano Júlio Lorenzoni faz da rua central em 1884 parece coincidir com o que ficou eternizado nas duas fotografias. "Mas Lorenzoni informa que a festa da Emancipação teria sido em setembro de 1884. Em 1886, foi inaugurada a torre em madeira com os sinos (ao lado do Santuário de Santo Antônio), o que me leva a pensar que a imagem pode ser anterior. Poderá ter sido um presente entregue à família real por ocasião de sua visita ao Rio Grande do Sul em 1885? Possibilidades que merecem ser melhor investigadas. Se considerarmos que as duas colônias eram homenagem ao casal que visitava o RS, é possível que tenham feito registros de 1884 e as fotografias entregues como 'lembranças' das colônias, que em 1885 já eram muito prósperas", considera.

(Stigaard também visitou o povoado vizinho de Conde d'Eu, hoje Garibaldi)

Da vizinha Conde d'Eu, hoje Garibaldi, também vem um dado interessante, que, antes de encerrar o debate, alimenta ainda mais dúvidas. Nesta série de fotos, um dos registros está identificado como "Festa de inauguração da escola da sociedade Stella d'Itália" (acima). Como resultado de  pesquisas para a produção de sua tese de doutorado em Educação, intitulada "O processo escolar entre imigrantes da região colonial italiana – 1875 a 1930", Terciane escreve o seguinte: "Em 10 de março de 1884, em Conde d’Eu (Garibaldi), foi fundada a Sociedade Italiana de Mútuo Socorro Stella d’Italia (data de 1883 com o nome inicial de Sociedade Conde d’Eu), com 44 sócios. O estatuto justifica sua criação mencionando os objetivos de 'unir os italianos residentes em Conde d’Eu, promovendo o bem dos sócios, socorrendo os associados doentes [...], auxiliando os sócios que, por qualquer razão, ficassem inválidos, com uma pensão mensal, desde que associados há mais de dez anos; pagar despesas funerárias aos sócios e buscar trabalho para os que o necessitassem.' Em Conde D´Eu foi com a fundação da Sociedade Stella d´Itália, em 1884, que organizaram a escola italiana. Conforme os estatutos dessa Sociedade, artigos 75º a 81º, a escola italiana masculina e feminina era mantida com as mensalidades pagas pelos pais e administrada por um regulamento especial, aprovado pelo Cônsul da Itália em Porto Alegre", o que aponta para mais uma possível discrepância de datas.

Ilustre desconhecido
Uma busca nos registros de entrada de imigrantes no Brasil, junto ao Arquivo Nacional, mostra que Luiz Stigaard chegou ao país em 4 de julho de 1881, a bordo do vapor Poitou, que partira do Porto de Marselha, na França. De nacionalidade dinamarquesa, ele desembarcou sozinho em terras brasileiras, com 37 anos de idade e profissão declarada como jornalista. A partir daí, sem uma busca mais aprofundada que pudesse encontrar outros vestígios de sua trajetória, sua presença e circulação pelos estados brasileiros, inclusive no Sul, é uma incógnita.

Assim como também parece uma incógnita outra foto tratada como sendo de Dona Isabel e também feita por Stigaard, com a qual fechamos essa matéria. A cena se dá à beira de um rio – será o das Antas? –, com a presença de um número considerável de pessoas em ambas as margens, montes ao fundo, onde se notam algumas clareiras abertas na vegetação e, no primeiro plano, aproximadamente vinte choupanas formando um pequeno conglomerado de moradias simples. "É mais um ponto que me faz pensar que se trata de um período anterior. Penso que pode ser às margens do Rio das Antas, e pode ser o espaço em que se fazia a passagem para o início da colonização de Alfredo Chaves (hoje Veranópolis) que é, novamente, em 1884. É uma imagem belíssima, impactante", acrescenta Terciane. Todavia, assim como as parcas informações sobre a vida de seu misterioso autor, as escassas anotações encontradas junto à imagem deixam no ar mais perguntas do que respostas.

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