O prefeito de Bento Gonçalves, Diogo Siqueira, decidiu assumir uma postura de franqueza na entrevista concedida ao programa RaioX, da Porto Alegre 24 Horas TV. Disse, sem rodeios, que tem “raiva de um adulto de 24 anos, saudável, parado, ganhando Bolsa Família”. Na sua avaliação, o país vive mergulhado em uma cultura de assistencialismo e deveria valorizar mais os deveres do que os direitos.
O prefeito não está errado em sua colocação, muito pelo contrário. A frase, forte e calculadamente provocativa, reflete um discurso recorrente: o de que há uma legião de pessoas jovens e aptas ao trabalho que preferem viver às custas de programas sociais. É um recado político que rende aplausos em certos círculos, mas que também carrega riscos, sobretudo pela generalização e pelo tom de ressentimento dirigido a um público que,naturalmente, é mais vulnerável e não vai às redes sociais para se defender.
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Há um ponto essencial que o prefeito parece ter ignorado ao vocalizar sua “raiva”: a fiscalização dos beneficiários do Bolsa Família é atribuição direta da prefeitura. É a gestão municipal que cadastra, revisa e acompanha quem tem direito ou não ao benefício. Portanto, se há jovens e adultos saudáveis recebendo o benefício indevidamente, trata-se de uma falha administrativa da própria máquina que ele comanda. Quem cadastrou essas pessoas no programa? Quem não fiscalizou se essa pessoa realmente se enquadrava nos critérios? Ora, prefeito, isso é DEVER da própria prefeitura, administrada por vossa senhoria, verificar. Seria então, o chefe do Executivo tentando combater "esse mal" que sua própria administração trouxe para Bento Gonçalves?
Mais grave ainda é o critério seletivo de indignação do prefeito. Siqueira diz se revoltar contra o Bolsa Família, mas não manifesta a mesma fúria quando se trata da saúde municipal, onde auxiliares e técnicos de enfermagem recebem os piores salários da Serra Gaúcha, ou diante do fato de que postos de saúde em Bento Gonçalves não contam sequer com ginecologistas para atender gestantes de bairros inteiros.
A raiva também não se volta à falta de monitores escolares, em que candidatos aceitam ganhar menos que um salário mínimo e ainda arcam com mais de R$ 400 em exames admissionais. Tampouco se nota indignação diante da situação das crianças autistas fora das escolas desde o início de 2025 — um drama que já comprometeu seriamente o aprendizado de dezenas de famílias e que parece não sensibilizar o mandatário. Poderia aqui citar muito mais coisas, porém, resolvi colocar somente as que vieram à cabeça recentemente.
É claro que há espaço para debater a sustentabilidade de programas sociais e os mecanismos de incentivo ao trabalho. Mas o que se viu na fala do prefeito foi, novamente, realizar a sua maior expertise: viralizar nas redes sociais. Talvez, seu crescimento político seja maior, combatendo os mais vulneráveis, de R$ 600, e não a ineficiência da prefeitura que administra, atuando em áreas cruciais que estão sob sua responsabilidade direta.
A boa política deveria ser movida pela capacidade de identificar prioridades, corrigir distorções e melhorar a vida concreta das pessoas. Se o prefeito de Bento Gonçalves reservasse metade da indignação que demonstrou contra o Bolsa Família para as mazelas que cercam sua própria gestão, talvez a população tivesse mais motivos para acreditar que sua raiva poderia, de fato, se converter em transformação.