
Pacientes atendidos pelas farmácias públicas de Bento Gonçalves têm relatado a entrega de quantidades inferiores às prescritas nas receitas médicas, sem a emissão de recibo que comprove o volume efetivamente dispensado. A prática, que atinge inclusive medicamentos básicos, provocou reclamações formais, abriu um embate entre usuários e a Secretaria Municipal de Saúde e deve entrar na pauta do Conselho Municipal de Saúde a partir de janeiro de 2026.
Casos relatados à reportagem do NB Notícias indicam que pacientes que necessitam de 30 dias de tratamento recebem, por vezes, apenas 10 ou 15 dias de medicação. Um dos exemplos envolve a dipirona, analgésico de uso comum. Em uma situação recente, a prescrição médica indicava 180 comprimidos mensais para uma paciente acamada com dor crônica, mas a Farmácia Central entregou apenas 60 unidades.
“Ela tem remédio para dez dias. Como ficam os outros 20?”, questiona Fernanda Juliana, responsável pela paciente que fez a retirada dos medicamentos. Orientada a retornar apenas no mês seguinte, ela registrou a reclamação na Ouvidoria do SUS. “A prescrição médica deveria ser soberana, pois reflete a real necessidade do tratamento”, afirmou.
A Secretaria Municipal de Saúde, comandada por Daiane Piuco, informou que a mudança decorre de decisões da Comissão de Farmacoterapêutica (CFT), amparadas pelas Portarias nº 103.930 e nº 104.646, ambas de 2025. Segundo a pasta, a limitação de quantidades não caracteriza desabastecimento, mas uma estratégia para garantir o “uso racional de medicamentos” e a “segurança do paciente”. Em nota enviada pela Assessoria de Comunicação (Ascom) da prefeitura, a secretaria afirmou que os tetos mensais de dispensação foram definidos por critérios técnicos e multiprofissionais. As orientações teriam sido encaminhadas às coordenações médicas e de enfermagem da UPA, Unidades Básicas de Saúde e Prontos Atendimentos entre outubro e novembro de 2025, por e-mail e grupos oficiais.
A gestão municipal reconhece, no entanto, que parte dos médicos continua prescrevendo quantidades acima do novo limite, alegando que alguns profissionais “não leram ou não deram a devida atenção” aos comunicados.
O argumento não convenceu integrantes do Conselho Municipal de Saúde. Para Adroaldo Dall’Mass, conselheiro municipal, a versão da Secretaria não corresponde ao que foi debatido no colegiado. “Nunca foi falado deste assunto no Conselho antes da última reunião, e o tema foi levantado por mim”, afirmou. Dall’Mass sustenta que o controle rígido de quantidades deveria se restringir a medicamentos controlados, conforme a Portaria 344/98, e não alcançar fármacos de uso comum.
Segundo ele, o Conselho deverá investigar e debater formalmente a medida a partir de janeiro de 2026, diante do impacto direto na continuidade de tratamentos, especialmente em casos de dor crônica.
A Secretaria de Saúde informou que pacientes oncológicos ou em cuidados paliativos podem solicitar ampliação da quantidade mediante preenchimento de um formulário específico, disponível no site da Prefeitura (Secretaria de Saúde → Farmácia Municipal → Formulários). O documento deve ser preenchido pelo médico e apresentado para análise técnica.
Enquanto isso, pacientes seguem enfrentando a divergência entre o que é prescrito no consultório e o que é entregue no balcão. A ausência de comprovante da quantidade dispensada agrava a insegurança, segundo usuários ouvidos pela reportagem.
O impasse expõe um problema sensível: a continuidade do tratamento em um sistema que impõe limites administrativos a prescrições médicas. Entre protocolos internos, comunicação falha e a falta de transparência na dispensação, pacientes relatam ficar “no meio do caminho” — sem medicamento suficiente e sem garantias formais sobre o que foi entregue.
Com a discussão prestes a chegar ao Conselho Municipal de Saúde, a expectativa é que o município esclareça critérios, ajuste fluxos e estabeleça mecanismos de controle e transparência, evitando que a economia de recursos recaia sobre quem mais depende do sistema público de saúde.