
A Prefeitura de Bento Gonçalves foi condenada, em decisão definitiva, a indenizar o arquiteto e pesquisador Júlio Posenato pela apropriação indevida de sua obra intelectual, intitulada “Caminhos de Pedra: projeto de resgate da herança cultural”. O processo, que tramitava desde 2020, transitou em julgado no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e aguarda apenas a liquidação da sentença, fase que definirá o valor exato da indenização.
Pela determinação judicial, o Município deverá pagar pelo uso não autorizado da obra a partir de 2015 — quando o conteúdo do projeto foi inserido no Plano Diretor sem autorização do autor — e enquanto o material permanecer no documento urbanístico, estendendo-se a indenização até 70 anos após a morte do arquiteto, conforme prevê a legislação de direitos autorais.
Posenato, hoje com 78 anos, é reconhecido como autor do projeto original que deu origem ao roteiro turístico Caminhos de Pedra, considerado um dos mais visitados de Bento Gonçalves, com mais de 450 mil visitantes anuais. Segundo o arquiteto, o trabalho teve início ainda na década de 1960 e resultou em um levantamento histórico e arquitetônico da imigração italiana nos distritos de São Pedro, São Miguel e Barracão.
O projeto foi oficialmente reconhecido pelo Conselho Estadual de Cultura em 1998, quando passou a captar recursos via Lei de Incentivo à Cultura (LIC/RS). Posenato permaneceu à frente da iniciativa até 2013, quando foi desligado da Associação Caminhos de Pedra, entidade que administra o roteiro.
“A Prefeitura inseriu meus textos no Plano Diretor, usou meu projeto sem eu saber. E isso agora está em liquidação de sentença”, declarou o arquiteto, que afirma jamais ter recebido qualquer pagamento pelo uso de sua criação intelectual.
A ação judicial, registrada sob o número 5021575-19.2020.8.21.0001, teve sentença favorável ao arquiteto tanto no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) quanto no STJ. O Município não apresentou recurso ao Supremo Tribunal Federal (STF), encerrando o processo.
De acordo com o acórdão, ficou comprovado que o Município de Bento Gonçalves utilizou textos e trechos do projeto Caminhos de Pedra em documentos oficiais, especialmente no Plano Diretor, sem autorização do autor ou qualquer compensação financeira.
A decisão reconhece que a obra é protegida pela Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98), que garante ao criador o direito exclusivo de explorar sua criação e de ser creditado como autor. O valor da indenização será fixado por perícia, levando em conta o tempo de uso e o impacto econômico do projeto no turismo municipal.
Durante o processo, Posenato alegou que a Associação Caminhos de Pedra — que não detinha direitos autorais sobre a obra — entregou documentos falsificados à Prefeitura para justificar o uso do material. Segundo ele, houve falsificação de sua assinatura e rasura em atas que o nomeavam como “diretor técnico” da entidade.
“A Associação não era dona da minha obra para entregá-la ao Município. Falsificaram minha assinatura e apresentaram uma ata rasurada. Foi um furto. Um roubo daquilo que eu criei”, afirmou o arquiteto em entrevista.
A decisão judicial reconhece que a indenização e os direitos de uso se estendem por 70 anos após a morte do autor, com repasse aos herdeiros. A medida é inédita em Bento Gonçalves e reforça a importância da proteção à propriedade intelectual em obras culturais e urbanísticas. “O projeto previa que o roteiro fosse para uso da própria comunidade, não teria investidores externos. Agora, cada um que adquire lá instala algo e centra no comércio. O que poderia ser um exemplo mundial de preservação dos costumes, cultura e revitalização do patrimônio, virou ênfase no comércio. Enquanto estive no roteiro, ele era respaldado pelo Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), órgão vinculado à UNESCO, agora não é mais. Essa é minha grande frustração. O irônico é que, se tivessem aplicado corretamente minha obra, o resultado seria bem maior”, explica o arquiteto.
Mesmo com a vitória, Posenato afirma que o sentimento é agridoce. “Essa causa ganha é amarga para mim. Vai remediar, mas cristaliza uma situação que não era o que eu gostaria. Eu sempre quis dedicar minha vida a causas positivas”, declarou.
Júlio Posenato é um arquiteto, urbanista e pesquisador brasileiro reconhecido por seu trabalho pioneiro sobre a italianidade no Brasil e pela preservação da arquitetura colonial italiana no Rio Grande do Sul. Formado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 1972, Posenato foi o primeiro estudioso a sistematizar os elementos construtivos, tipológicos e simbólicos das edificações erguidas pelos imigrantes italianos, analisando materiais, formas, usos e inserções na paisagem, e estabelecendo uma cronologia da arquitetura da imigração que hoje serve de referência para pesquisadores e restauradores em todo o país. Sua atuação extrapola o Rio Grande do Sul, sendo também uma das principais autoridades sobre a arquitetura colonial italiana no Espírito Santo, onde contribuiu para o reconhecimento e a valorização de comunidades ítalo-brasileiras. Em 2012, presidiu a seção gaúcha do ICOMOS-Brasil (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios), reforçando seu papel como defensor do patrimônio histórico e cultural.
Além de arquiteto, Júlio Posenato é um divulgador da língua e da cultura talian, tendo participado dos estudos que resultaram na normatização e fixação do dialeto e sendo apontado por Darcy Luzzatto como o responsável por propor o nome pelo qual o idioma passou a ser conhecido. Foi presidente da Societá Taliana Massolin de Fiori, fundada no final da década de 1980 em Porto Alegre, e criou a editora Posenato Arte & Cultura, pela qual publicou obras de relevância histórica e cultural, como Homens e Mitos na História de Caxias, de Ângelo Costamilan, e a reedição fac-similar do raro álbum Cinquantenario della Colonizzazione Italiana nel Rio Grande del Sud (1875–1925), considerado o marco fundador dos estudos sobre imigração italiana no sul do Brasil.
Descrito pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul (CAU-RS) como um profissional que “encontra na pesquisa o fascínio que move sua produção”, Posenato nunca foi professor universitário, mas é amplamente reconhecido como formador de gerações de estudiosos da arquitetura e da cultura italiana no Brasil. Entre suas principais obras publicadas estão Assim Vivem os Italianos: Arquitetura da Imigração Italiana no Rio Grande do Sul (1983), Antônio Prado, Cidade Histórica (1989), Arquitetura da Imigração Italiana no Espírito Santo (1998), Talian: Língua e Identidade Cultural (1999), A Arquitetura do Norte da Itália e das Colônias Italianas de Pequena Propriedade no Brasil (2004) e Pesquisando Arquitetura (2016).
Sua trajetória une arte, ciência e memória, consolidando-o como um dos mais importantes pesquisadores da cultura italiana no Brasil, referência incontornável na valorização da identidade regional e na defesa da preservação do patrimônio histórico.
O caso Caminhos de Pedra tornou-se um marco jurídico e moral na história da cidade. O roteiro, que deveria representar o resgate da cultura e da arquitetura dos imigrantes italianos, passou a simbolizar também um debate sobre autoria, ética e reconhecimento intelectual.
A liquidação da sentença será o último passo de um processo que durou mais de uma década, marcando o fim de uma disputa que mistura patrimônio, história e justiça — e que, segundo Posenato, repara um erro histórico cometido contra quem sonhou e idealizou os Caminhos de Pedra.