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Bento Gonçalves, RS
Com trabalho e fé profunda, o imigrante desbravou. O verso do hino de Bento Gonçalves, composto há mais de um século, segue atual. Quase 150 anos depois da chegada dos primeiros imigrantes, a cidade continua sendo construída por mãos vindas de fora. Entre elas, as do grafiteiro venezuelano Angel Lucena, que vem transformando muros e paredes da Capital do Vinho em painéis de identidade, memória e esperança.
Casado, pai de três filhos e morador de Bento Gonçalves há sete anos, Lucena encontrou no Brasil não apenas um novo lar, mas a chance de fazer da arte o seu sustento. Hoje, seus murais coloridos se espalham pela cidade e pela região, despertando a atenção de quem passa e ampliando o debate sobre arte urbana e pertencimento.
Um dos trabalhos mais emblemáticos de Lucena ocupa o muro lateral do Clube Aliança, um dos mais tradicionais de Bento Gonçalves, na rua Júlio de Castilhos, no centro. A obra reúne símbolos facilmente reconhecidos pelos moradores: a Fontana, a Pipa Pórtico, a Igreja São Bento, a Maria Fumaça e a própria fachada do clube.
“O mural é feito de cores vibrantes que expressam alegria. Foi isso que eu quis transmitir. Dar vida a esse muro que já estava deteriorado”, afirma o artista.
A pintura não apenas revitalizou o espaço urbano, como também se tornou um retrato visual da cidade — uma espécie de cartão-postal contemporâneo, visto diariamente por quem circula pelo centro.
A trajetória de Lucena no Brasil começa com a dificuldade. Na Venezuela, conta, a crise econômica tornava quase impossível viver da própria profissão. “Eu acabava me obrigando a fazer qualquer coisa e mesmo assim não conseguia alcançar aquilo que queria de forma profissional”, relembra.
A vinda para Bento Gonçalves foi influenciada pelo irmão, que chegou à cidade por meio de um programa da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. “Eles deram o alicerce para a gente começar, com moradia, trabalho e até utensílios”, agradece.
Nos primeiros anos, Lucena trabalhou com carteira assinada em uma imobiliária e, depois, em um hotel de luxo no Vale dos Vinhedos. A estabilidade permitiu conquistas que pareciam distantes: financiamento imobiliário, carro, moto e segurança financeira. “Tenho tido muito sucesso na parte econômica em Bento”, comemora.
O ponto de virada veio com o contato com o coletivo de arte urbana Nest Panos. Foi ali que Lucena passou a mostrar seu potencial e a ser reconhecido como grafiteiro profissional. Desde então, suas obras ultrapassaram os limites de Bento Gonçalves.
“Hoje tenho trabalhos em Santa Cruz do Sul, Sapiranga, Passo Fundo, Caxias do Sul, Porto Alegre e até em Santa Catarina”, conta.
Na Capital do Vinho, seus murais estão em locais como a Vinícola Aurora, onde pintou uma pipa gigante; o Parque Gasper, na Linha Eulália; a Avenida São Roque; a Guilherme Fasolo; e o bairro Maria Goretti. Foi justamente um mural feito em frente à empresa Fasolo, com referência ao desastre climático de 2024, que despertou o interesse do Clube Aliança para um trabalho de paisagem urbana.
Para Lucena, o grafite é mais do que técnica: é identidade e afeto. Assinando como WESOT, ele costuma deixar em suas obras uma marca especial — a frase “I Love Leslie”, em homenagem à esposa. “É a minha forma de identificar meu trabalho e diferenciar minha arte dos outros”, diz.
Formado em Desenho Gráfico e com curso de artes plásticas na Venezuela, o artista afirma que a prática constante foi essencial para a evolução do seu estilo. Entre os temas mais frequentes estão letras em 3D e personagens em realismo, suas especialidades, mas ele se adapta aos pedidos dos clientes. Já pintou restaurantes, salões de beleza e creches.
“Quando estava na Venezuela, eu pintava por hobby. Hoje não. Bento me deu a bênção de poder fazer aquilo que mais gosto e viver desse trabalho”, afirma.
Dos três filhos de Lucena, dois nasceram em Bento Gonçalves. A mais velha, Angelie, hoje com 9 anos, chegou da Venezuela ainda pequena. Angel, de 5, e Angie, de 1 ano e meio, já são bento-gonçalvenses de nascimento. “Aqui construímos nossa família”, diz, com orgulho.
A língua foi o principal obstáculo no início. “A primeira palavra que aprendemos foi ‘obrigado’. Depois vieram os dias da semana”, recorda. Ainda assim, Lucena destaca a hospitalidade local. “As portas se abriram. O povo foi muito receptivo.”
Entre os imigrantes venezuelanos, há até uma brincadeira: quem chega a Bento Gonçalves pode escolher onde trabalhar. “Eu achava que era exagero, mas quando você começa a entregar currículo, sempre aparecem duas ou três oportunidades”, conta.
Ao olhar para trás, Lucena resume sua experiência com um conselho direto: “Vale a pena vir para Bento. É preciso ir atrás dos sonhos e ter muita disciplina para alcançar os objetivos”.
Nas paredes que colore, o grafiteiro deixa mais do que tinta. Deixa a marca de uma imigração contemporânea que, assim como no passado, continua pintando — agora em spray e cores vibrantes — a história de Bento Gonçalves.
