Nos últimos dez anos, o Brasil viveu uma das maiores expansões da história do ensino médico. Enquanto em 2015 existiam cerca de 250 faculdades médicas, em 2025 esse número ultrapassa 360 instituições, quase 45% a mais de opções para quem busca o diploma, segundo dados publicados no site Medway, extraídos do relatório “Demografia Médica no Brasil 2025”, organizado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em parceria com o Ministério da Saúde e a Associação Médica Brasileira. Ainda segundo o relatório, paralelamente, o total de vagas cresceu de aproximadamente 20 mil para quase 35 mil anuais, um incremento superior a 70%, um avanço que, sem dúvida, exige acompanhamento na formação prática e ética dos futuros profissionais.
Apesar do crescimento, a qualidade da formação e a distribuição dos médicos continuam desafiadoras. De acordo com o Conselho Federal de Medicina (CFM), é preciso expandir com responsabilidade, pois muitos dos médicos saem da faculdade sem ter passado por um ambiente adequado de prática.
“A formação médica tem um pilar teórico muito importante, mas a prática é um fator essencial que tem a capacidade de integrar teorias e aplicar em um paciente em todas as suas nuances. A qualidade da formação prática em medicina é decisiva, porque é nesse momento que o estudante aprende a escolher e aplicar a conduta mais adequada para cada paciente, em vez de repetir o mesmo procedimento para todo mundo. Investir em formação sem prática é a mesma coisa que achar que conhece o restaurante só porque leu o cardápio”, afirma o Dr. Lucas Moser, que em sua prática diária no atendimento à população em unidades de pronto atendimento do governo municipal de Itajaí/SC, acompanha estudantes no cumprimento de suas horas práticas de treinamento.
Segundo o médico, o papel do preceptor — profissional que acompanha estudantes de Medicina durante os atendimentos — é determinante para consolidar a prática e o senso ético da profissão. “É na convivência com o preceptor que o estudante aprende não apenas a aplicar o conhecimento técnico, mas também a lidar com o paciente com empatia, responsabilidade e respeito”, acrescenta.
Mais formandos do que vagas de residência
A graduação em Medicina tem duração mínima de seis anos e, em tese, prepara o estudante para atuar como médico generalista. No entanto, a maioria busca uma residência médica, etapa de especialização prática que aprofunda o treinamento em hospitais e clínicas.
Segundo artigo da jornalista Isabella Marin, no site Futuro da Saúde, tendo também como base o relatório da Demografia Médica no Brasil 2025, de 2017 a 2018, eram 17.130 graduados em medicina para 13.322 vagas de residências. Já de 2023 a 2024, foram 32.611 egressos para 16.189 vagas. Isso mostra que as vagas de residência não têm conseguido acompanhar o número de médicos recém-formados, resultado do aumento de novas instituições e cursos de medicina.
Essa defasagem empurra muitos recém-formados diretamente para o mercado de trabalho, muitas vezes sem a experiência prática necessária. “Quando o recém-formado não passa por uma vivência supervisionada adequada, ele é lançado a situações complexas sem o preparo ideal, o que aumenta o risco de condutas inadequadas e gera insegurança tanto para o profissional quanto para o paciente”, complementa o médico Lucas Moser.
Aprendizado que nasce da prática
Nos hospitais e unidades básicas de saúde, a rotina é a grande professora, que ensina a lidar com casos complexos, administrar tempo, comunicar-se com pacientes e trabalhar em equipe.
“Acredito que transferir os conceitos da medicina para a prática nos ambulatórios seja a parte mais enriquecedora da faculdade. Quando entrei no internato, percebi uma curva de aprendizado muito nítida. Tenho aprendido alguma coisa nova praticamente todos os dias, o que é muito empolgante do ponto de vista acadêmico. Além do mais, perceber que de fato estamos ajudando alguém é com certeza a parte mais gratificante”, relata Lais Dalmolini, estudante do 12º semestre de Medicina da Universidade do Vale do Itajaí/SC.
Para ela, ver os dois lados dos “pacientes reais” é o mais importante. “Na teoria, pouco se fala sobre como os pacientes lidam com o processo da doença. Na prática, acompanhamos pacientes com doenças mais graves, que não respondem ao tratamento, para aprender a lidar com a dor e fragilidade humana”, diz a estudante, que reconhece a importância de ter um preceptor a acompanhando. “Ter uma pessoa disponível e disposta a sanar as dúvidas, instigar o raciocínio e apontar nossos erros é essencial para nosso desenvolvimento na profissão”.
Desafio contínuo para universidades e para o SUS
Entidades médicas e educacionais defendem que a formação prática deve ser o eixo central do ensino médico. Hospitais universitários, ambulatórios-escola e o internato precisam oferecer não apenas aprendizado técnico, mas também uma formação humanística, que ensine a lidar com as complexidades do paciente.
O Sistema Único de Saúde (SUS) tem papel decisivo nesse processo: ele abriga a maioria dos cenários de prática médica do país. Para o Dr. Lucas Moser, “o SUS é essencial para a formação médica porque oferece uma vivência das diferentes realidades do Brasil e permite desenvolver empatia, responsabilidade social e atuação em equipe — mas também impõe desafios, como a falta de estrutura em algumas unidades e a sobrecarga de atendimentos”, aponta o médico.
O futuro da formação médica
Com um total de 597 mil médicos em atividade em 2024 e projeção para a próxima década de superar a marca de um milhão, com maioria de mulheres, o Brasil enfrenta o desafio de equilibrar quantidade e qualidade. “O aumento de vagas e instituições é um avanço, mas só produzirá bons resultados se vier acompanhado de práticas supervisionadas, professores qualificados e políticas de fixação no interior. Afinal, formar médicos é muito mais do que transmitir conhecimento técnico — é preparar pessoas para lidar com vidas, com empatia, responsabilidade e compromisso social”, resume o Dr. Lucas Moser.
Ainda segundo o Dr. Lucas, em tempos de expansão acelerada, o país precisa garantir que cada novo médico possa ser um profissional completo — tecnicamente preparado, eticamente consciente e humanamente presente.