Bento Gonçalves enfrenta uma grave crise na atenção básica à saúde da mulher. Há mais de um ano, o município não dispõe de ginecologistas para atender a população nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs). A ausência de profissionais tem deixado centenas de pacientes sem consultas, exames de rotina ou acompanhamento médico, obrigando muitas mulheres a recorrerem ao sistema particular ou simplesmente aguardarem indefinidamente por um atendimento.
Na Unidade Central, principal ponto de atendimento da cidade, as consultas estão suspensas há meses. A auxiliar de cozinha Aline Cenci de Carvalho do Amaral, de 35 anos, é uma das pacientes que sentem na pele os efeitos dessa falta de estrutura. Ela sofre de endometriose profunda, doença grave e progressiva, mas segue sem tratamento adequado pelo SUS.
“Marquei ginecologista no começo de 2024. A consulta foi remarcada quatro vezes. Em outubro do ano passado, recebi uma mensagem de cancelamento. Mesmo assim, continuei tentando e consegui ser atendida apenas em setembro deste ano. Fiz os exames e, quando voltei para mostrar o resultado, já não havia mais médica”, relata.
Aline conta que, após meses de espera, precisou pagar uma consulta particular, onde descobriu a gravidade do seu caso. “A médica me explicou que a minha condição não tem tratamento com medicação, apenas cirurgia. Estou tentando encaminhar o procedimento pelo SUS, mas não tenho condições de pagar particular”, lamenta.
Segundo informações apuradas pela reportagem, a falta de ginecologistas está ligada aos baixos salários pagos pela Prefeitura de Bento Gonçalves. Muitos profissionais têm preferido atuar em municípios vizinhos, como Garibaldi, Pinto Bandeira e Carlos Barbosa, onde a remuneração é significativamente superior. Mesmo aumentando a remuneração de R$ 5,5 mil para R$ 8,8 mil, os valores pagos pela prefeitura de Bento não são atraentes como os dos demais municípios.
A última médica ginecologista contratada pela rede municipal atuou por apenas 30 dias, entre agosto e setembro deste ano, antes de se desligar e migrar para a cidade de Garibaldi. Desde então, nenhum profissional foi contratado para substituí-la.
Os relatos de abandono se repetem em diversas regiões da cidade. Moradores da Zona Sul de Bento Gonçalves também denunciam a ausência de especialistas e a falta de informações sobre quando os atendimentos serão retomados.
“Minha esposa esperou quase um ano para consultar com o ginecologista. Quando conseguiu, fez os exames, mas agora não tem ninguém para ver os resultados. Ligamos o tempo todo e não há previsão”, conta um morador, que pediu para não ser identificado.
A situação também atinge o Centro de Especialidades, que, segundo pacientes, “já não conta com nenhum ginecologista há meses”.
Em nota, a Assessoria de Comunicação da Prefeitura de Bento Gonçalves afirmou que os encaminhamentos da atenção básica passam por análise da regulação ambulatorial municipal, seguindo protocolos estabelecidos pelo Estado.
Conforme o comunicado, o atendimento de ginecologia foi referenciado para o Hospital São Carlos, em Farroupilha, por meio do Programa Assistir, do Governo do Estado, no Ambulatório Ser Mulher. “A regulação e o agendamento são feitos conforme critérios de prioridade definidos pelos médicos do Estado”, informou a nota.
Apesar da explicação, a Prefeitura não detalhou quando o atendimento local será restabelecido nem quais alternativas imediatas as pacientes devem procurar.
A endometriose profunda é considerada a forma mais grave da doença, caracterizada pela invasão do tecido endometrial em mais de 5 milímetros de profundidade em órgãos pélvicos como o intestino, a bexiga e o ureter. Essa condição pode causar dores intensas, cólicas incapacitantes, aderências e cicatrizes internas, comprometendo a fertilidade e a qualidade de vida das mulheres.
Sem acompanhamento médico adequado, casos como o de Aline podem evoluir para situações de risco, exigindo cirurgias complexas e dolorosas.
Enquanto outras cidades da Serra Gaúcha ampliam o acesso à saúde da mulher, Bento Gonçalves se afasta cada vez mais do atendimento humanizado que o tema exige. Com a atenção básica fragilizada e a ausência de políticas efetivas para atrair e manter especialistas, as mulheres seguem à própria sorte — entre filas, cancelamentos e o silêncio do poder público.
“A mulher precisa ser ouvida, cuidada e respeitada. A falta de ginecologistas não é um problema técnico — é um problema de prioridade”, resume Aline do Amaral.